quarta-feira, 29 de julho de 2015

II - Renato



                “Matemática é idiota.” Foi o que um garoto da minha sala falou uma vez. “Matemática é idiota.” Simples assim, medíocre assim. Na época eu já conhecia a palavra “medíocre” e era uma de minhas preferidas, apesar de eu pensar que ela significava uma coisa que não era exatamente o que ela significava. Eu pensava que várias coisas tinham um significado diferente do que elas realmente tinham. E é isso, e somente isso, que me permite olhar para trás  com certa felicidade. Eu gosto de assistir a essas memórias como se elas passassem em um país estrangeiro, narradas em outra língua. Existem diversas realidades, infinitas. Eu e você vivemos em um segmento de realidade nesse momento, distintas entre si, não compartilhadas. Há um segundo ou dois anos, nunca se sabe ao certo em que ponto se dá a seção, era outro o contexto histórico em que te submergiam e eram ainda outros os eventos que se sobrepunham para formar o meu zeitgeist. Pode ser que daqui alguns anos eu assista a essas memórias pensando que talvez eu ainda não tivesse entendido o conceito de “zeitgeist” perfeitamente. Mas é somente lá, naquele ponto da história, de uma das histórias, em que eu concluo que não entendi direito o “zeitgeist”, é que serei capaz de compreender em que ponto da realidade eu me situo neste momento presente. Só então eu entenderei quem foram, de fato, meus companheiros de jornada ou, em outras palavras, se você estava realmente lá. Algumas coisas só se tornam compreensívels para nós quando vistas à distância e, nesse caso, é em unidade de tempo que se faz a contagem. Pois bem. Agora sou capaz de olhar para aquele dia e perceber o quão influente seria aquela pedra que decidi jogar em todos os eventos que se sucederam.

                ”Você é idiota.” Joguei a pedra. O lago, que agora sabemos ser um lago, limitado pelas margens do tempo fragmentado, se revoltou. A água, antes parada e translúcida, fluiu em ondas multidirecionadas, não tão aleatoriamente quanto se pode supor, atingindo em cheio o despreparo dos envolvidos. É engraçado como às vezes, quando ainda estamos presos ao momento presente, conseguimos olhar para a cena com “olhos de fora”. As pessoas tem um jeito engraçado de agir automaticamente quando confrontadas com o inesperado, como se fossem uma grande massa. Ele, o garoto que eu não lembro o nome, primeiro trocou com os outros um olhar de grande massa. Depois olhou para mim e falou “Não falando com você.” Uma parte de mim entendeu perfeitamente, mas a outra, a parte que gosta de escolher os pedacinhos do quebra-cabeça, resolveu que aquilo não fazia o menor sentido. “ sim. Está. falando.” A parte de mim que gosta de assinar as obras no final. A parte que percebeu que o olhar na cara do menino era engraçado e estúpido. “Nossa, cala a boca.”, foi o que ele respondeu. E então eu ri, ri de prazer. Eu tenho essa habilidade, a de escolher as pecinhas, como eu falei. Eu nunca escolho me frustrar, pois eu  posso optar pela confirmação das minhas suspeitas e o prazer que isso agrega. É por isso que eu sorrio agora, quando lembro que foi naquele momento que percebi meu companheiro de jornada pela primeira vez e fiz minha aposta. E eu estava certa.

                Renato era o único com um olhar emburrado na cara. O meu próprio olhar, como um farol dentro de um quarto cheio de olhos cegos, caiu sobre ele. A realidade que nós compartilhávamos naquele momento se tornou tão evidente que eu tenho certeza que ele também percebeu. Ele sentiu que podíamos perceber um ao outro porque éramos os únicos naquele pedaço do caminho, eu tenho certeza. Ninguém estava mais prestando atenção e, mais do que em uma simples coincidência, nossos pensamentos estavam no mesmo lugar quando percebemos um ao outro. E eu vi isso naquele momento, com os “olhos de fora” da minha mente. Na língua que eu usava na minha lembrança, expliquei a mim mesma que quando a gente não entende o porquê de uma impressão é porque são os olhos da mente falando conosco. Só que os nossos ouvidos não fazem leitura e ouvir não é o bastante. Então, naquele dia, eu virei as costas para a lousa da sala de aula porque senti a presença do meu companheiro de jornada. Fiquei curiosa. E foi tão estúpida a maneira como ele me olhou, primeiro desviando os olhos e depois encarando de volta, já com a expressão limpa, que eu ri. Ri de prazer.

Um comentário:

  1. Bia, sua sensibilidade é incrível.
    Estou de cara (gíria 2012).
    Curiosa para o próximo capítulo!

    Ps. Eu posso SEGUIR o seu blog!!!!!!

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