terça-feira, 14 de julho de 2015

Um conto besta inspirado em Poe

*Observações: Estava com saudades de atualizar o blog e não queria postar mais um despejo de palavras que cacei no bloco de nota do celular. Queria postar uma narrativa, coisa que nunca mais escrevi (quero muito mudar isso, só preciso descobrir como). Calhou de eu encontrar esse, hum, excerto perdido nos arquivos do meu computador, que na verdade era uma história dentro de outra história que eu estava escrevendo em 2013. Espero que isso me inspire a voltar a escrever qualquer coisa. Quem sabe eu não volte em breve, toda feliz, anunciando que a ideia de um enredo empolgante me fez querer postar com frequência?*

           A jovem Elinor tinha acabado de descobrir que correr sem fazer barulho por uma decadente mansão do século XIX poderia não ser nada fácil. A cada passo aceitava com mais convicção que tábuas chorosas e degraus soltos eram mais odiosos do que fantasmas e assombrações. Mas não tinha tempo para comparações, pois precisava sobreviver a ambos os tipos de vilões. Tomando todo o cuidado que uma corrida às cegas permitia, e sobretudo exigia, percorreu a enorme mansão de pedra rústica em pouco menos de quatro minutos, que em seu coração mais pareceram quatro anos. Regozijou-se com um rápido sentimento de alívio quando se viu banhada pela luz do luar e seus pés descalços tocaram a grama úmida de orvalho. A sensatez, porém, assim como o coração se debatendo contra as costelas, não permitiram que a ilusão durasse muito, obrigando Elinor a se por a correr novamente. Deu-se início a uma corrida desenfreada em direção ao bosque, o caminho iluminado pela noite fria e límpida que, naquele momento, era mais inimiga do que aliada. Por causa de um lampejo de insanidade, Elinor atreveu-se a olhar para trás, o que se mostrou o maior de seus erros. Não por avistar qualquer criatura sobrenatural, mas porque havia uma pedra em seu caminho e o momento de desatenção custou-lhe o tropeção que a levou ao chão. Dando-se conta de que seu tornozelo havia se tornado inútil no momento em que caíra sobre ele com todo o peso, Elinor se viu tomada pelo pânico, perdendo o controle até mesmo dos pulmões que pareciam um par de acendedores de lareira inflados loucamente por algum desequilibrado. Incapaz de sentir a dor que a faria ranger os dentes dentro de alguns instantes, voltou toda a atenção para outros sentidos que agora estavam aguçadíssimos. Não percebeu nada de estranho até onde seus olhos podiam alcançar, mas a noite havia se tornado estranhamente silenciosa, como se até mesmo as corujas reconhecessem o peso da expectativa do que estava para acontecer. O único som que Elinor escutava era o do próprio coração, primeiro contido e depois cada vez mais alto, como se todo o seu corpo se resumisse a um único órgão. Como se todo o mundo tivesse se resumido às loucas batidas de seu coração. Então um novo som se sobressaiu à pulsação de seu próprio sangue: o farfalhar de asas. 

            Elinor olhou em volta, esperando avistar a aproximação do maldito corvo, mas o que viu no lugar disto fez seus ossos congelarem. Das portas e janelas da mansão surgia uma imensa nuvem negra que, por um segundo, fez Elinor pensar que o casarão estava em chamas. Foi então que se deu conta de que o barulho de asas e o grasnar de corvos vindos da tenebrosa figura, que se avolumava cada vez mais em sua direção, não podiam ser coisa de sua imaginação. Tentou se levantar, mas uma pontada de dor no tornozelo a impediu, obrigando-a a se render à paralisação que tomava todo o seu corpo. Queria fechar os olhos, mas já não era capaz de desviar o olhar daquilo, que se aproximava ameaçadoramente, engolindo-a. Em um instante, todo o céu estava coberto pela nuvem negra que bloqueava qualquer resquício de luminosidade da lua, imergindo Elinor em sua sombra. Somente quando achou que tudo estava perdido foi capaz de encontrar algum consolo, como se não existisse nada que pudesse ser feito e só restasse se render ao desconhecido. Arregalou os olhos o máximo que pode e, mesmo não conseguindo enxergar sequer um palmo à sua frente, assim permaneceu por um tempo, quase admirando a musicalidade do esvoaçar de corvos ao redor de sua cabeça. Assustou-se quando a garra de um deles pousou sobre seu ombro. 

            Ao se virar, entretanto, não se tratava de uma ave, ou pelo menos não de uma ave convencional. Parado atrás de Elinor estava o homem mais esquisito que ela já havia visto. Era uma figura esguia e diáfana, como se um manto negro e puído o cobrisse da cabeça aos pés. Apesar da altura e escuridão, Elinor podia enxergar seus olhos com clareza, que eram exatamente os mesmos olhos do corvo que a assombrara por noites na janela de seu quarto. 

            - Olá, Elinor . – falou a voz do homem em sua cabeça.– Achei que nunca fosse deixar de fugir. 

            - Quem é você? Ou, talvez fosse melhor perguntar, o que é você? 

            - O que eu sou não importa. – respondeu o homem corvo. - Tudo o que importa é o que seremos daqui para frente. 

            - O que quer dizer? 

            Mas o homem não respondeu. No lugar disto, levantou a cabeça para os céus e abriu seus longos braços, que só então Elinor percebeu serem asas. Os outros corvos mudaram sua rota e passaram a voar ao redor dos dois, formando um pequeno círculo de penas esvoaçantes. Elinor cobriu o rosto com as mãos, tentando se proteger do vento cortante, mas os corvos reduziam cada vez mais o espaço entre ela e o homem, obrigando-a a se encolher. Em um movimento protetor, o homem corvo a envolveu com suas asas, fazendo nascer em seu coração um misto de horror e conforto, sentimento que não a abandonaria por um longo tempo. O ruído das aves, agora abafado, foi diminuindo até se tornar um sussurro e por fim desaparecer. Elinor sentiu o vento levantar seus cabelos e tirou as mãos do rosto, só então se dando conta de que nada mais além da noite fria a envolvia. Todas as aves e o homem corvo haviam desaparecido, não deixando sequer um resquício de penas para convencê-la de sua sanidade. As corujas e os grilos voltaram a cantar, como que a contemplando com a certeza de que tudo tinha voltado ao normal. Ao longe, escutou o barulho da charrete e, ao tentar se levantar, percebeu que até mesmo a injúria de seu tornozelo tinha ido embora. 

            Quando a charrete se aproximou, pode ver a surpresa no rosto de seus pais. 

            - Elinor, o que está fazendo aqui fora sozinha? – exclamou o pai, saltando imediatamente e correndo em sua direção. – Céus, o que faz fora de casa tão tarde da noite? 

            Mas Elinor não se importou com seu tom exasperado, pois estava aliviada demais por não estar mais sozinha. Correu em direção ao pai e, no momento em que se encontraram, se jogou em seus braços e começou a chorar copiosamente. 

            - O que aconteceu? Está machucada? – perguntou o pai, confuso. 

            - Meu Deus, você podia ter sido devorada por lobos! – constatou a mãe, que a essa altura já os tinha alcançado. – Você está bem? 

            Elinor balançou a cabeça afirmativamente, enxugando as lágrimas. Tranquilizou-os dizendo que resolvera recebê-los pessoalmente por não aguentar mais esperar. Comovidos pelo afeto da filha e exaustos pela viagem, voltaram para dentro do casarão para guardar suas poucas bagagens, não sem antes dar um beijo de boa noite na testa de Elinor. 

            Subindo para o quarto, Elinor mal podia acreditar que aquelas eram as mesmas escadas que descera correndo de três em três degraus mais cedo. Nem mesmo a casa parecia ser a mesma que ambientara sua noite de horror. Talvez o medo e a solidão a tivessem feito alucinar e confundir sonho com realidade. Tudo podia não ter passado de um pesadelo, afinal. A cada passo se convencia mais e mais de que até mesmo o ranger dos tacos teriam sido produtos de sua imaginação, assim como a aparição sobrenatural dos corvos. Podia muito bem ter batido a cabeça no momento da queda e, por causa da dor, perdera a capacidade de diferenciar o que era do que não era. 

            Entrou no quarto já tranquila e com as emoções amenas, mas ao passar pela penteadeira um arrepio subiu-lhe a espinha. Pensou ter notado um vulto negro pelo canto dos olhos e, lentamente, virou-se na direção do espelho. Teve que conter um grito, pois não era a Elinor de sempre quem a observava do outro lado. Reunindo toda sua coragem, obrigou-se a olhar mais de perto e sentiu o chão desaparecer quando não encontrou a habitual garotinha loira de olhos verdes. Do outro lado do espelho, quem a encarava de volta era uma menina pálida de cabelos pretos e escorridos que imitava todos os seus movimentos. O que mais fez sua alma congelar, entretanto, foram aqueles olhos. Olhos negros como a noite, redondos como besouros, profundos como um poço. Olhos de corvo. 

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